quarta-feira, 2 de julho de 2014

Gênero, sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. São Paulo:Vozes, 1997.
Este trabalho se propõe a apresentar as ideias das referidas autoras quanto a temática de gênero em seus atravessamentos e transversalidades.
Em Gênero, Sexualidade e Educação, a autora apresenta conceitos e teorias no campo dos estudos feministas e suas relações com a educação, estuda as relações do gênero com a sexualidade, as redes do poder, raça, classe, a busca de diferenciação e identificação pessoal e suas implicações com as práticas educativas atuais.
Já em Gênero: uma categoria útil de análise histórica, a ideia nuclear é a de que gênero é usado para enfatizar o cunho social das diferenças entre os sexos e que o termo possibilita um rompimento com o estigma do sexo.
Guacira Lopes Louro inicia propondo um rompimento com o pensamento dicotômico masculino em oposição ao feminino, alegando que esta é uma visão reducionista e que as relações de gênero se produzem na e pelas relações de poder.
Scott também evidencia as relações entre gênero e poder, alegando que ainda que não seja o único campo de articulação do poder, o gênero é a primeira instância dentro da qual, ou por meio da qual, o poder se articula. Afirma que os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização de toda a vida social, influenciando as concepções, as construções, a legitimação e a distribuição do próprio poder.
Para essa autora o gênero implica quatro elementos relacionados entre si:
1)      símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações múltiplas;
2)      conceitos normativos que colocam em evidência a interpretações do sentido dos símbolos. Esses conceitos são expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas
3)      noção de fixidade da categoria de gênero ao sistema de parentesco, impossibilitando uma visão mais ampla que abarque a realidade da sociedade, das relações de trabalho, da educação, dos sistemas políticos, da economia, etc.
4)      identidade subjetiva: o gênero torna-se implicado na concepção na construção do poder em si, sendo ainda, um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana.

No primeiro capítulo de seu livro, Guacira procede a uma construção histórica sobre o termo e suas representações mais significativas. O conceito de gênero para a autora, está diretamente ligado a história do movimento feminista, implicado lingüística e politicamente em suas lutas. Scott reafirma a questão da produção do conceito enfatizando que seu sentido foi importado da gramática, passando mais tarde a referir-se à organização social das relações entre os sexos, realçando-se o caráter cultural das distinções baseadas no sexo.
O sufragismo,é caracterizado por Gaucira como a “primeira onda” importante do movimento feminista. No final da década de 1960, além das preocupações sociais e políticas, dá-se inicio as contruçoes propriamente teóricas, sendo engendrado e problematizado o conceito de gênero caracterizando-se assim a “segunda onda.” No Brasil, foi no final dos anos 80 que as feministas começam a usar o termo gênero.
“Militantes feministas participantes do mundo acadêmico vão trazer para o interior das universidades e escolas questões que as mobilizavam, impregnando e "contaminando" o seu fazer intelectual — como estudiosas, docentes, pesquisadoras — com a paixão política. Surgem os estudos da mulher.” (LOURO, 1997, p.16). Segundo a autora, tornar visível aquela que fora ocultada foi o grande objetivo das estudiosas feministas desses primeiros tempos.
Sobre isso Scott faz uma crítica aos trabalhos que utilizam o termo gênero para abarcar as mulheres sem referenciá-las explicitamente. Essa tentativa de despolitizar a inclusão das  mulheres na história seria fruto, segundo ela, de uma tentativa de legitimação acadêmica.
Também critica as pesquisas que apesar de analisarem as relações sociais entre homens e mulheres atém-se somente ao estudo de certos setores da organização social, como a família, a reprodução, as ideologias de gênero. Estas pesquisas realçam o mero uso do termo gênero, sem uma mudança de perspectiva teórica, o que faz com que estes trabalhos continuem a estudar “as coisas relativas às mulheres”, de forma descritiva, sem que se questione porque as relações entre homens e mulheres estão construídas como estão,.
Para Guacira, uma das mais significativas marcas dos Estudos Feministas foi seu caráter político. “Objetividade e neutralidade, distanciamento e isenção, que haviam se constituído, convencionalmente, em condições indispensáveis para o fazer acadêmico, eram problematizados, subvertidos, transgredidos.”(LOURO, 1997, p.19)
O argumento da diferenciação biológica passa a ser cada vez mais um argumento irrecorrível.  É preciso demonstrar que não é esta a origem da diferenciação, mas “a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico.” (LOURO, 1997, p.21)
            A pretensão, segundo a autora é então, entender o gênero como constituinte da identidade dos sujeitos e sobre isso destaca que as identidades dos sujeitos não podem ser entendidas como fixas, estáveis, como essências. “Ao contrário são atravessadas por diferentes discursos, símbolos, representações e práticas, construindo os sujeitos como masculinos ou femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais.” (LOURO, 1997, p.28)
Enquanto que na obra de Scott a autora passa a analisar três posições teóricas na análise do gênero, quais sejam, as teóricas do patriarcado, as marxistas, e as de base psicanalítica, Guacira discute os atravessamentos entre gênero, sexualidade e poder com argumentos baseados nas teorias de Michael Foucault, o qual analisa as relações de poder e suas construções, que perpassam também pelas relações de gênero. A autora discute essas relações a partir dos aspectos de desigualdades e diferenças, pontos norteadores do gênero na contemporaneidade e questiona buscando uma análise mais crítica do assunto sobre o que é referência, quem são os diferentes, quem instituiu essa padronização, o que é normal, o que é diferente, e principalmente, quais as relações de poder que envolvem a permanência dessas referências.
  Sobre os posicionamentos teóricos, Scott apresenta a ideia de que as teóricas do patriarcado defendem uma adaptação da teoria hegeliana, focando a teoria em suposta necessidade dos homens em subordinar as mulheres para fins de controlar os meios de reprodução da espécie. Em outras palavras, garantir que seus herdeiros sejam de fato seus. Para essa corrente, revoluções tecnológicas que eliminem a necessidade do corpo feminino para a reprodução seria o caminho da libertação feminina.  Ainda na “abordagem patriarcal”, há aquelas que defendem ser o controle da sexualidade escopo do patriarcalismo. A sexualidade feminina seria reificada na mesma proporção que o trabalho masculino. A consciência dessa experiência de reificação, dessa vivência comum, levaria as mulheres à ação política.
Crítica de Scott:  A teoria de patriarcado desenvolve-se em cima das distinções físicas entre os sexos. Ao analisar essa única variante como fonte de toda desigualdade de gênero, “a história  se torna um epifenômeno que oferece variações  intermináveis sobre o tema imutável de uma desigualdade de gênero fixa”. (SCOTT, 1995, p.29)
As feministas marxistas têm uma abordagem mais histórica, já que elas são guiadas por uma teoria da história. Os primeiros debates entre as feministas marxistas giravam em torno da rejeição do essencialismo daqueles que defendem que “as exigências da reprodução biológica” determinavam a divisão sexual do trabalho pelo capitalismo.
Adentrando o viés da sexualidade e da psicologia, o volume de ensaios “ Powers of Desire”, 1983, foi uma tentativa, norteada pelos escritos de Foucault e pelo contexto da “revolução sexual”, de se entender as relações de gênero como interação entre “a sociedade e as estruturas psíquicas”. Segundo Scott, o único ensaio que aborda seriamente as questões teóricas propostas é o de Jéssica Benjamin.
Crítica de Scott: As dificuldades de desenvolvimento teórico encontram-se nas próprias limitações da matriz marxista, que acaba sempre subordinando o conceito de gênero ao de uma estrutura econômica, não tendo o gênero, seu próprio estatuto de análise.
            Na teoria psicanalítica duas escolas se destacam: a anglo-saxônica, que trabalha com a teoria das relações objetais, e a francesa, que se desenvolve a partir do pós-estruturalismo de Freud, nos termos da teoria da linguagem lacaniana. As escolas têm em comum o enfoque nas etapas de formação do indivíduo, sob perspectivas distintas.     
           A teoria das relações objetais defende que a identidade de gênero é formada a partir de experiências concretas, principalmente as vivenciadas domesticamente, como a divisão de trabalho familiar, a atribuição de tarefas entre os pais.  A teoria pós-estruturalista da linguagem se prende aos sistemas de significação, o que abarca não só as palavras, mas todo um sistema simbólico que se referenda no gênero.
Crítica de Scott: A teoria anglo-saxônica reduz a formação de identidade do sujeito a um círculo muito restrito, como se não houvesse, além da família, outros sistemas sociais que façam parte dessa construção. A escola francesa, ao entender o sujeito sexuado como unidade instável, em permanente construção a partir da oposição entre as significações masculino/feminino, articula castração com as relações sociais, mas tende a universalizar as categorias masculino-feminino, desconsiderando a especificidade e contexto histórico na construção da subjetividade e reforçando o caráter de oposição binária do gênero.
As duas autoras são unânimes na ideia de que reduzir gênero ao conceito de mulher é uma atitude simplista e que as várias categorias ou estruturas (raça, etnia, classe, gênero), não podem ser analisadas isoladamente, já que a opressão de uma está inscrita no interior da outra, onde “é preciso considerar gênero tanto como uma categoria de análise quanto como uma das formas que relações de opressão assumem numa sociedade capitalista, racista e colonialista” (LOURO, 1997, p.55).
Sobre a questão da diferença, Guacira traz uma ideia importante reforçando o que já discutira em outros momentos do texto, o fato de que por estar implicada em relações de poder, a diferença é sempre nomeada a partir de um determinado lugar que se coloca como referência e que a narrativa convencional vê o gênero como um molde social. Assim, a hegemonia branca, masculina, heterossexual e cristã, tem nomeado como diferentes aqueles e aquelas que não compartilham desses atributos.
Já, sobre a construção escolar das diferenças, Guacira nos leva a reflexão acerca de muitas situações e conceitos que são naturalmente apropriados pelos sujeitos e que, como alerta a autora precisariam se tornar alvo de atenção renovada, de questionamento e, em especial, de desconfiança, pelos pré-conceitos que comportam.
Segundo a autora, a escola ocidental moderna institucionaliza o processo de "fabricação" dos sujeitos sendo este geralmente muito sutil, quase imperceptível, reforçando as  desigualdades e diferenças. Os currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos, processos de avaliação e disciplina são constituídos e produtores das diferenças de gênero, sexualidade, etnia, classe, entre outros. O que nos leva a refletir sobre nossas práticas educacionais, como reforçamos e/ou produzimos estas dicotomias.
Na sequência, Guacira traz a discussão as relações com as diferenças na escola, destacando os mecanismos de classificação, ordenamento e hierarquização. Cita alguns posicionamentos fixados pela escola como o treino de habilidades manuais para as meninas, a separação nas atividades entre meninos e meninas, a diferenciação dos brinquedos e das atividades desportivas, a representação da família típica, a ambigüidade da expressão homem, a linguagem aparentemente inocente e desproposital. 
O campo da linguagem recebe especial atenção da autora. Suas reflexões nos conduzem a desnaturalizar algumas ideias que se cristalizam em nosso imaginário ganhando status de verdades absolutas. Passamos a considerar tudo isso de algum modo, como inscrito na "ordem das coisas”.
“A linguagem é, seguramente, o campo mais eficaz e persistente — tanto porque ela atravessa e constitui a maioria de nossas práticas, como porque ela nos parece, quase sempre, muito "natural". (LOURO, 1997, p.65)
“A linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças” (LOURO, 1997, p.65)
“A linguagem é um turbilhão e nos usa muito mais do que nós a usamos.” (LOURO apud Portinari, 1989, p. 18)
No quarto capítulo, Guacira inicia questionado sobre qual seria  o gênero da escola. Sua reflexão passa pela compreensão de que “a escola é atravessada pelos gêneros” (LOURO, 1997, p.89), o que é confirmado quando pensamos na feminilização do magistério (representação da professora assexuada, materna ou até solitária) ou na masculinização (quando da transmissão de conhecimentos).
Na verdade, também se trata de uma construção social, histórica e cultural dos sujeitos e da escola. A partir do gênero da escola, a autora questiona as atitudes patriarcais e sexistas no capítulo seguinte.
É nesse capítulo que a autora discute como promover uma educação não-discriminatória ou no mínimo menos discriminatória.
A importância desse aspecto na discussão do livro é de reforçar a necessidade de um olhar diferenciado, da necessidade de transpor barreiras e limites e contribuir para a construção de um conhecimento novo. Transformações que se efetivará a partir de políticas públicas e das práticas cotidianas. A partir daí discorre sobre a educação sexual e sobre como incluí-la na escola ou no currículo de forma a abranger o assunto com a importância que exige na contemporaneidade, ou seja, além de uma esfera puramente biológica.

No último capítulo, a autora discute sobre o feminismo afirmando que nenhuma ciência é desinteressada ou neutra. Como exemplo, cita que a ciência foi feita pelos homens,  brancos, ocidentais e de classe dominante que determinaram o que era importante, em geral. Portanto, as idéias apresentadas pela autora não representam “levantar bandeira” do feminismo, mas operar com categorias analíticas instáveis, movimentando-se em um meio teórico que está em constante construção e que acolhe a crítica como parte desta. “A proposta é, portanto, ir além dos estudos meramente atentos a um superficial e momentâneo interesse sobre mulher e gênero. O que se propõe são estudos que ultrapassem a simples adesão temática, pesquisas que se disponham a um mergulho teórico mais ousado – tarefa que certamente implica em desafios de outra ordem” (LOURO, 1997, p.152)