As ideias presentes
neste texto assentam suas bases no livro As
Fronteiras da Epistemologia, do professor Luiz Carlos Bombassaro, o qual
nos remete às primeiras formulações acerca do tema, mas que ora, partindo de
outras leituras e de nossas próprias, nos arriscamos a ampliar, partido
principalmente das formulações de Vygotsky, acerca da teoria sócio-histórica.
Consideremos
para início dessa exposição o significado da palavra conhecimento. Segundo Cruz
(2002), para a filosofia existem dois tipos de
conhecimento, o conhecimento vulgar ou conhecimento do senso comum que é o
conhecimento do que, e o conhecimento científico,
que é o conhecimento do por que.
Para o
autor, a diferença entre esses dois tipos de conhecimento não está nos objetos
conhecidos, mas no modo de conhecê-los. Reside principalmente no conhecimento
das causas, já que o conhecimento vulgar apenas constata a ocorrência dos
objetos, enquanto que o conhecimento científico sabe o porquê eles existem.
É
comum associarmos conhecimento como um ato da razão, entendendo que é por meio
dela que o sujeito cognoscente apreende o real, encadeando ideias e juízos,
para chegar a uma conclusão. Era através da razão também, que os gregos
buscavam a superação do mito ou do saber comum.
Como
conceito de razão podemos dizer que “a razão é a faculdade que calcula, mede,
julga, deduz, compara, relaciona e coordena os meios com os fins, ou seja, é a
faculdade que possibilita o funcionamento abstrato do mecanismo de pensamento”
(HORKHEIMER, 1976, p.11)
Nas palavras do
professor Bombassaro, (1992, p.14) “Assim, dizer do homem que ele é racional,
marcado originalmente pela racionalidade, é o mesmo que atribuir-lhe a
capacidade de poder dar razões, de poder argumentar discursivamente.”
No entanto, como alerta
o professor, o conhecimento não se limita a uma atividade intelectual, ele é
historicamente situado, uma vez que o processo
de construção do conhecimento surge como forma de solucionar determinados
problemas, explicar situações e fenômenos.
A
capacidade criativa do homem se expande a cada novo desafio encontrado, a
começar pela descoberta do fogo, seguindo-se a descoberta da pólvora, as grandes
navegações, à revolução da indústria e uma infinidade de outras criações que
surgem a partir de uma necessidade particularmente humana.
Nos voltando para a
questão da historicidade por um viés mais psicológico, chegamos aos estudos do psicólogo bielo-russo Lev Vygotsky. Para Vygotsky, o
homem é essencialmente social e seu desenvolvimento está condicionado às
relações que estabelece com o meio.
As
concepções deste teórico sobre o funcionamento do cérebro humano fundamentam-se
na ideia de que as funções psicológicas superiores são construídas ao longo da
história social do homem. Na sua relação com o mundo, mediada pelos
instrumentos e símbolos desenvolvidos culturalmente, o ser humano cria as
formas de ação que o distinguem de outros animais. Assim, o cérebro humano não
seria caracterizado como um sistema fechado, fixo e imutável, mas condicionado
e moldado ao longo da história.
As
postulações de Vygotsky sobre o substrato biológico do funcionamento
psicológico evidenciam a forte ligação entre os processos humanos e a inserção
do indivíduo num contexto sócio histórico específico. Instrumentos e símbolos
construídos socialmente definem quais das inúmeras possibilidades de
funcionamento cerebral serão efetivamente concretizadas ao longo do
desenvolvimento e mobilizadas na realização de diferentes tarefas. (LA TAILLE,
1992, p.26)
Se pensarmos no processo de desenvolvimento de
uma criança, temos o meio como o mais importante elemento deste processo. A
qualidade dos estímulos que uma criança recebe é preponderante para o
amadurecimento do seu sistema nervoso central, sem os quais, o desenvolvimento
das funções psicológicas superiores e a capacidade de formular conceitos
estaria seriamente comprometida.
Para
Vygostsky, apud. La Taille et all. (1992, p. 24) “a cultura
torna-se parte da natureza humana num processo histórico que, ao longo do
desenvolvimento da espécie e do indivíduo, molda o funcionamento psicológico do
homem.”
Quando
uma mãe adverte uma criança para que não coloque a mão no fogo porque queima e
ela obedece, podemos perceber a função de um mediador social histórico na
apropriação de um conhecimento. Assim, grande parte da ação do homem no mundo e
dos conhecimentos produzidos é mediada pela experiência do outro, pela
informação apresentada por outra pessoa. Um indivíduo não precisa viver tudo de
primeira mão e isso é essencial para os processos de crescimento histórico, uma
vez que de outra forma, cada pessoa teria que estar começando sempre, tudo do
zero.
A
cultura funciona desta forma, como uma espécie de alargador das potencialidades
humanas. Assim, se pelas possibilidades biológicas, por exemplo, o homem anda,
mas não voa, pela cultura, essa possibilidade se torna real.
Constituindo-se
sujeito nas e pelas interações que estabelece, esta formação passa pelo
significado que o outro dá às estas ações, mas além disso, o próprio
significado que o outro dá a essas ações é produto de todo um processo
histórico e cultural. Através da mediação do outro nos transformamos de ser
biológico em ser cultural.
Assim,
uma questão que levantamos partindo desse arcabouço teórico, é se a própria
racionalidade humana não estaria condicionada ao aspecto social. Neste viés
interpretativo, nossa capacidade de entender, enunciar, argumentar e abstrair,
próprias daquilo que se diz racional, além de serem constitutivas do homem,
como capacidades inatas, só se desenvolveriam a medida que este fosse
confrontado social e historicamente, processo este possibilitado inicialmente
por meio da linguagem.
Podemos
destacar como exemplo disso o caso dos meninos lobo encontrados na Índia em
1911 que nunca chegaram a alcançar o nível normal de desenvolvimento, o caso de
Caspar Houser, adolescente de cerca de 15 anos, encontrado em Nurembergue, tomado
como referência sobre estudos acerca de linguagem e realidade, dentre muitos
outros casos espalhados pelo mundo que comprovam a tese de que em ambiente
inumano o aparato biológico por si só, não possibilita o exercício das
condições próprias da espécie aprendidas
e acomodadas socialmente.
A
racionalidade, no pensamento de um sujeito, não está isolada e acompanha-se da
capacidade de emoção, do sentimento estético, de preocupações metafísicas,
religiosas, do exercício da vontade, de projetos, de escolha de valores, de uma
cultura, de uma representação do mundo, segundo disposições próprias a cada
indivíduo.
Se nos
reportarmos a etimologia do termo, razão vem do latim rationem, que
significa cálculo, conta, medida, regra. E a própria noção de medida ou regra
remete a cultura, à valores, à aquilo que é considerado aceitável num
determinado espaço e num determinado tempo.
Para Habermas, apud Alves (2009, p.182)
Não há nenhuma concepção
neutra da racionalidade, dado que o nosso conhecimento de mundo pressupõe
valores. O “saber em que” tal ou tal coisa consiste está implicitamente ligado
a um “saber porque” e reenvia nesse sentido às justificações potenciais. [...]
Em outros termos, a gramática do termo “saber” implica que tudo aquilo que nós
sabemos pode ser criticado e justificado.
Assim, a razão não é apenas uma faculdade interior do homem,
mas ela se personificou nos próprios signos da sociedade. Para que uma
opinião seja dita racional, basta que ela seja aceita por boas razões no
interior de um contexto de justificação, ou de outra forma, “a racionalidade de
um julgamento não implica sua verdade, mas apenas sua aceitabilidade fundada
dentro de um contexto dado” (op cit).
Racionalidade
e historicidade são pois, dois traços em estreita correlação que constituem a
amálgama humana, pois só enquanto dotado
do logos o homem é capaz dizer o mundo, mas esta habilidade não se faz isolada
da realidade histórico social. Do contrário, afeta e é afetada por ela.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALVES, Marco Antonio Souza. Racionalidade e Argumentação em Habermas.
Kínesis, Vol. I, n° 02, Outubro-2009, p. 179 - 195
BOMBASSARO, Luiz Carlos. As fronteiras da epistemologia: uma introdução
ao problema da racionalidade e da historicidade do conhecimento.
Petrópolis: Vozes, 1992
CARVALHO, Fábio. Gestão do Conhecimento. São Paulo: Editora Pearson, 2012.
CRUZ,
Tadeu. Gerência do Conhecimento. São Paulo: Editora Cobra,
2002.
HORKHEIMER, Max. Eclipse
da Razão. Rio de janeiro: Labor do Brasil, 1976.
LA TAILLE, Yves de. OLIVEIRA, Marta Kohl de. DANTAS,
Eloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon:
teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992